Chegou a hora de termos A Grande Conversa sobre os fundamentos da vida. Escutem portanto atentos. Talvez o que eu diga seja chocante, mas é meu dever prepará-los para o mundo.
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Comecemos pelas revelações de um lugar conhecido aos dois, embora de modo superficial: a cozinha. Este cômodo repleto de portinhas, acessórios, tomadas e víveres funciona de acordo com práticas anciãs de asseio e estocagem.
O pão de forma, por exemplo. Vocês cresceram comigo dizendo para não aproximarem um saco plástico do rosto. Mas a regra não vale para o pão de forma. O pão de forma gosta do plástico. É a casinha dele. Fora do plástico as fatias se desorientam e perdem o rumo. Elas endurecem as bordas como um coração sem amor. Então, da próxima vez que vocês fizerem uma torrada, um queijo-quente, devolvam o pão à casinha, trancando a porta com o pedaço de arame.
Lembram a semente de feijão no algodãozinho? A mamãe colocava perto da janela, a planta crescia, dava grãos, eu colocava a nossa pequena colheita na panela, com mais feijão para cozinhar? Era bonito, ficou na lembrança. Agora quando vocês partem uma maçã ou laranja as sementes deixadas na tábua de madeira não brotam. A casca ao léu não vira adubo. Eu sei, faz sentido, casca, semente, madeira, tudo orgânico e meio molhado, eis o fundamento de um pomar. Não é bem assim que funciona. As sementes desaparecem sem o desabrochar de uma árvore pelas mãos da pessoa que vos escreve.
Um cachorro é um cachorro. Uma vassoura é uma vassoura. Mas como, vocês me perguntam, saber a diferença, se ambos limpam o azulejo? Explico: da próxima vez que vocês abrirem um pacote de Doritos e a coisa explodir, causando uma chuva de triângulos até o chão, a bagunça pode ser limpa tanto por uma vassoura quanto por um cachorro. A vassoura é a que não vomita depois.
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Muito cuidado com as más influências, ou, para usar o termo atual, a má influencer. O raio da mulher ensinando a fazer bolo de micro-ondas não deveria viralizar nas redes mas mofar no anonimato. Vai a xícara para o micro-ondas com ovo, farinha e tal, a coisa explode, quem limpa? Essa parte ela não mostrou.
Nós somos uma família politizada, com frequentes discussões sobre direitos humanos e liberdade de expressão. Tal fundamento não se aplica ao saco de sucrilhos ou ao pacote de biscoito. Não é desumano mantê-los dentro da embalagem no armário escuro.
E já que tocamos no tema carboidratos, continuemos por seus desdobramento: Farelos. Muito bonita, esta palavra. Farelos. Das mais belas da língua portuguesa. Mas farelo bom é farelo escrito. Farelo na bancada perde o lirismo e não é magia quando se movimenta. É formiga.
Deixo para o fim a mais chocante revelação. Assim como não existe a fada do dente, não existe a fada da louça. A não ser que vocês me vejam como tal. Pensando bem, eu aceito a alcunha, porque trabalhar, cozinhar, limpar e lavar a meleca da xícara com massa grudada de bolo por causa da porcaria da influencer é um superpoder. Mas é como dizem: filhos de fada, fadinhos são. A hora de vocês vai chegar.