Pular para o conteúdo

Entretenimento Online

A escritora profissional senta para escrever


Quarta pela manhã. A escritora profissional acorda disposta para mais um dia dedicado à literatura. Ela faz o café, põe a mesa, dá comida para o cachorro, prepara os sanduíches do almoço, acorda os filhos, diz “não esquece de levar o trompete”, “não esquece de levar a lancheira”. Ela sai de carro para a escola, volta, arruma a cozinha, bota a louça na máquina, toma outro café e se tranca no quarto.

Tempo, silêncio, o privilégio de escrever em tempo integral. Mas antes ela tem que responder e-mails, confirmar a consulta do dentista, marcar a entrevista. Só então ela desliga a internet para enfim começar a trabalhar. O telefone toca. É o senhor vietnamita que faz capas para sofá. A escritora profissional pondera. Estas são as horas sagradas de trabalho, quando o telefone no silencioso só aceita ligações de emergência. Mas eis que o vietnamita é uma emergência, desde que a família adotou um cachorro compatível com uma alcateia. O bicho tem pelo de lobo, tamanho de lobo e mania de se roçar no sofá novo e agora protegido por lençóis. A escritora é mulher madura, quer uma sala digna e não um arranjo de comuna hippie, e movida pelo senso de orgulho e dignidade ela decide escrever dali a pouco e atender a ligação.

É impossível entender o que o vietnamita diz. É impossível ao vietnamita entender o que a escritora diz. Ambos trabalham em suas respectivas línguas, a escritora na mesa do quarto, o vietnamita, com seus conterrâneos no ateliê. Pelo telefone se comunicam no inglês rascante dos que se mantêm em suas ilhas. O vietnamita (senhor Thai) está por perto e sugere visitá-la com uns tecidos. A escritora profissional pondera. Há de se preservar o tempo de escrita com a convicção de uma antifascista, mas ela tem a razão ofuscada pela lembrança da remela de cão nas almofadas. Manda por mensagem o endereço.

Chega o senhor Thai com amostras de tecido. A escritora pergunta se ele vai lavar o tecido. O senhor Thai diz que não. Mas tem que lavar porque o tecido encolhe, diz a escritora. O senhor Thai diz que se lavar ele terá que passar. A escritora diz “então você passa, oras”. Senhor Thai: “Passe você.”

A escritora está a ponto de mandar o senhor Thai catar coquinhos, mas ela pensa no tempo que perderá para encontrar outra pessoa e consente. Ela deveria estar pelo quinto parágrafo de ficção, e no entanto está se perguntando qual dos tecidos beges — se “Creme Brulê” ou “Areia do Caribe” — tem a mesma tonalidade que a remela do cachorro.

Vai-se o senhor Thai. Volta a escritora profissional para a mesa. Ela irá enfim escrever, logo depois de perguntar ao Google como lavar e passar o tecido para capas de sofá. Toca o telefone. É a filha, dizendo que a amiga foi escolhida para a peça de teatro e ela não, mas ela é melhor que a amiga. A escritora diz que sente muito, falemos com calma quando você chegar. A filha diz que descobriu uma receita de bolo ótima no YouTube, e a escritora: “O que você está fazendo no iPhone? É proibido na escola.” A filha responde: “Haha, tchau.”

Volta a escritora profissional para a mesa. Ela irá enfim escrever. O telefone toca. É o filho, dizendo que esqueceu o trompete e pedindo para ela levar até a escola. A escritora profissional suspira, se rende e levanta. Ela se sente amadora de ofício e profissional do negócio da vida. Pensa que dali a uns anos vai melhorar e que ela terá saudades.



Source link

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *